Na carta de Advento deste ano, o Pe. Tomaž Mavrič, CM, o 24º sucessor de São Vicente, convida-nos a olhar para o amor providencial de Deus e a refletir sobre alguns textos chave de São Vicente de Paulo que nos ensinam a confiar em Deus e no cuidado contínuo que ele tem por nós.

“Hino à providência”

Meus queridos irmãos e irmãs em São Vicente,

A graça e a paz de Jesus estejam sempre conosco!

Para cada um de nós, a vida é uma peregrinação. Estamos constantemente em movimento. Essa peregrinação não é tanto um deslocamento físico, de um lugar para outro, mas sim, um movimento interior dos nossos pensamentos, reflexões, percepções sensoriais e da nossa oração.

Durante o ano, a Igreja nos oferece momentos privilegiados, pausas ao longo do percurso, para nos ajudar a aprofundar nossa compreensão da peregrinação de nossa vida e encontrar todos os dias o sentido, mesmo de cada minuto, do que constitui este caminho. Aprendemos a estar cada vez mais atentos aos acontecimentos cotidianos, às pessoas que encontramos, aos pensamentos, às emoções que surgem e à natureza – árvores, flores, rios, montanhas, animais, sol, lua, etc. – que nos rodeia. Nossa atenção e solicitude se estendem progressivamente à humanidade inteira e a todo o universo.

Um destes tempos fortes é o Advento. Neste período privilegiado do ano, continuaremos a nossa reflexão sobre os elementos que moldaram a espiritualidade vicentina e que levaram São Vicente de Paulo a se tornar um místico da Caridade. Além daqueles sobre os quais refletimos nos últimos três anos, outro fundamento da espiritualidade vicentina é a Providência.

Os termos a seguir podem expressar a essência da Providência: “a orientação de Jesus para minha vida”, “o projeto de Jesus para a minha vida”, “a prescrição de Jesus para uma vida cheia de sentido”.

A Providência traça o seu caminho em nosso ser, em nossa mente e em nosso coração sob uma condição: a da confiança. Ter confiança na “orientação de Jesus para minha vida”, “o projeto de Jesus para a minha vida”; “a prescrição de Jesus para uma vida cheia de sentido”. Nós nos colocamos nas mãos de Jesus, confiantes de que sua orientação para a nossa vida é a melhor possível, seu projeto para a nossa vida é o melhor projeto possível e sua prescrição é a melhor referência possível para uma vida cheia de sentido.

A Providência será efetiva em nossa vida de acordo com a profundidade da nossa confiança em Jesus. Quanto mais profunda for a nossa confiança em Jesus, mais permitiremos que a Providência realize milagres em nossa vida. Quanto mais nos colocarmos nas mãos de Jesus, mais estaremos em condições de ler os acontecimentos cotidianos, os encontros e os lugares como meios pelos quais Jesus nos fala. Quanto mais confiarmos no projeto de Jesus para nós, mesmo quando os acontecimentos são incompreensíveis ou dolorosos, mais poderemos contar com a Providência. Colocarmo-nos nas mãos de Jesus e confiar plenamente nEle nos ajuda a deixar a Providência agir em nós, em todas as circunstâncias da nossa vida.

Diante do fato de nos “abandonarmos” nas mãos de Jesus em todas as situações, o nosso olhar se transforma. Não avaliaremos os acontecimentos da vida como bons ou maus momentos, porém, nós os consideraremos através da pessoa de Jesus, fazendo-Lhe total confiança, e os reconheceremos como “o momento favorável”. Esta escolha fará desaparecer dois termos do nosso vocabulário: “destino” e “acaso”. Perceberemos que eles não são coerentes com a nossa maneira de compreender o Evangelho e Jesus.

O total abandono nas mãos de Jesus, a total confiança no projeto de Jesus e a total confiança na Providência nos ajudam a descobrir ou a redescobrir a beleza, o positivo e o sentido de cada acontecimento. Isto se opõe a um olhar sobre os acontecimentos simplesmente através dos nossos olhos, nossa mente e nossos sentimentos humanos. Neste caso, a mentalidade do destino e do acaso destaca o negativo e esconde a beleza, o positivo e o sentido de tudo o que nos afeta e nos modela.

Uma maravilhosa expressão desta confiança na Providência se encontra em uma bela oração escrita pelo Bem-aventurado Charles de Foucauld, após sua profunda conversão pessoal, que o conduziu por caminhos inesperados, durante os quais, sua confiança estava somente em Deus. Comumente chamada de “oração do abandono”, ela traduz seu pleno desejo de colocar-se entre as mãos do Pai, conforme o modelo de abandono de Jesus entre as mãos do seu Pai, e se tornar um instrumento que permite ao Pai fazer dele o que quiser. Ele está pronto para tudo, para aceitar tudo e entregar sua alma nas mãos do Pai, sem reserva e com uma confiança ilimitada:

Meu Pai,
eu me abandono a Ti,
faz de mim o que quiseres.
O que fizeres de mim,
eu Te agradeço.

Estou pronto para tudo, aceito tudo.
Desde que a Tua vontade se faça em mim
e em tudo o que Tu criastes,
nada mais quero, meu Deus.

Nas Tuas mãos entrego a minha vida.
Eu Te a dou, meu Deus,
com todo o amor do meu coração,
porque Te amo
e é para mim uma necessidade de amor dar-me,
entregar-me nas Tuas mãos sem medida,
com uma confiança infinita
porque Tu és meu Pai!

Há trezentos anos, a Providência tornou-se um dos pilares da espiritualidade de São Vicente de Paulo. Ao consultar suas cartas e suas conferências, ficamos impressionados com a frequência com a qual São Vicente fala sobre a Providência. A Providência foi um dos principais fatores que moldaram Vicente para torná-lo a pessoa, o santo que conhecemos. Seu caminho de conversão, desde o Vicente de sua infância, de sua juventude e seus primeiros anos de sacerdócio, até o Vicente que abraçou a Providência e a quem chamamos Santo, não foi fácil.

Ele tinha seus próprios projetos e sua própria ideia da função do sacerdote, suas próprias ambições e seus objetivos egoístas. No entanto, ele chegou a renunciar a sua própria vontade, a colocar Jesus no primeiro plano, a confiar inteiramente nos projetos de Jesus e não nos próprios, e a “cantar” frequentemente e de diferentes maneiras o que poderíamos chamar um “Hino à Providência”. De fato, esta mudança radical em si foi um milagre. São Vicente, tendo total confiança na Providência, tornou-se a própria Providência para os outros, para os pobres. Foi o ponto culminante de uma união mística, porém, não de uma união mística abstrata, mas de uma união mística que provocou uma resposta afetiva e efetiva.

Para a meditação, gostaria de oferecer um trecho da composição de Vicente de um “Hino à Providência”, fruto de sua reflexão sobre as experiências de sua vida.

“ … como há imensos tesouros ocultos na santa Providência e como honram de modo soberano a Nosso Senhor os que a seguem sem jamais ultrapassá-la!”[1]

“ … abandonemo-nos à divina Providência; ela saberá propiciar-nos o que precisamos”[2].

“ … repassando todas as coisas principais acontecidas na Companhia, parece-me, e é fácil demonstrá-lo, que, se tivessem sido feitas antes do seu tempo, não teriam tido êxito. Digo-o de todas, sem excetuar uma sequer. Por causa disso, tenho uma devoção particular em seguir passo a passo a adorável Providência de Deus. A única consolação que tenho é que me parece que foi unicamente Nosso Senhor que fez e faz incessantemente as coisas desta pequena Companhia…”[3].

“Entreguemos, entretanto, isso à conduta da sábia Providência de Deus. Tenho uma devoção especial em segui-la, e a experiência me faz ver que ela faz tudo na Companhia e que nossas providências o impedem”[4].

“A graça tem sua hora. Abandonemo-nos à providência de Deus e nos guardemos de ultrapassá-la. Se for do agrado de Nosso Senhor dar-me alguma consolação em nossa vocação, será por isto: penso, ao que me parece, que nos temos empenhado em seguir, em todas as coisas, a santa Providência e temos procurado não colocar o pé a não ser onde ela nos indicou”[5].

“A consolação que Nosso Senhor me concede está em pensar que, pela graça de Deus, procuramos sempre seguir e não antecipar a Providência que, com muita sabedoria, conduz todas as coisas ao fim para o qual Nosso Senhor as destina”[6].

“Não podemos assegurar melhor nossa felicidade eterna do que vivendo e morrendo no serviço dos pobres, entre os braços da Providência e em total renúncia a nós mesmos, para seguir a Jesus Cristo”[7].

“Submetamo-nos à Providência, ela fará nossos negócios a seu tempo e ao modo dela”[8].

“Ah! Meus irmãos, peçamos muito a Deus este espírito para toda a Companhia, que nos leve por toda parte, de sorte que, quando virem um ou dois missionários, possam dizer: ‘Eis aqui homens apostólicos, preparados para irem aos quatro cantos do mundo, levando a Palavra de Deus’. Roguemos a Deus que nos conceda esse coração. Há alguns que, pela graça de Deus, o possuem, e todos são servos de Deus. Mas, ir para lá! Ó Salvador! Não fazer dificuldade para ir! Ah! Isso sim é importante! É preciso que tenhamos este coração, tenhamos todos um mesmo coração, desapegado de tudo, uma perfeita confiança na misericórdia de Deus, sem ficar especulando, sem nos inquietar, sem perder a coragem. “Terei tal coisa naquele país? Por que meio?” Ó Salvador! Deus não nos faltará nunca! Ah! Meus senhores, quando ouvirmos falar da morte gloriosa dos que lá estão, ó Deus! Quem não desejaria estar no lugar deles! Quem não desejaria morrer como eles, ficar seguro da recompensa eterna! Ó Salvador! Haverá algo de mais desejável? Não fiquemos, pois, amarrados a isto ou aquilo, coragem! Vamos para onde Deus nos chamar, ele será nosso despenseiro, nada temamos. Ora pois, bendito seja Deus!”[9].

No início deste tempo do Advento, inspiremo-nos na oração do abandono do Bem-aventurado Charles de Foucauld. Nosso Santo Fundador, São Vicente de Paulo, e todos os demais Bem-aventurados e Santos da Família Vicentina encarnaram em suas próprias vidas uma confiança absoluta em Jesus e, em seu tempo e contexto respectivos compuseram um “Hino à Providência”. Possamos nós também compor o nosso próprio “Hino à Providência”.

Seu irmão em São Vicente,

Tomaž Mavrič, CM
Superior Geral da Congregação da Missão

 

Notas:

[1] SV, vol. I, Carta 31 à Luísa de Marillac, pág. 78.

[2] SV, vol. I, Carta 245 a Roberto de Sergis, Padre da Missão, em Amiens, pág. 398.

[3] SV, vol. II, Carta 559 a Bernardo Codoing, superior, em Annency, pág. 252.

[4] SV, vol. II, Carta 678 a Bernardo Codoing, superior, em Roma, pág. 488.

[5] SV, vol. II, Carta 704 a Bernardo Codoing, superior, em Roma, pág. 528.

[6] SV, vol. II, Carta 707 a Bernardo Codoing, pág. 532.

[7] SV, vol. III, Carta 1078 a Jean Barreau, cônsul da França em Argel, pág. 472.

[8] SV, vol. III, Carta 1109 a René Alméras, superior, em Roma, pág. 546.

[9] SV, vol. XI, Carta 135 – Partilha de Oração, de 22 de agosto de 1655, pág. 298.