A escolha do título Ética e misericórdia para esta obra comemorativa dos dez anos da Faculdade Vicentina e para homenagem do professor Domênico foi determinada por dupla motivação: o contexto eclesial em que vivemos e a relação que tem com a pessoa homenageada.
Num gesto profético, o papa Francisco convocou um jubileu extraordinário sobre a misericórdia o qual se conclui no dia 20 de novembro de 2016. A data é particularmente significativa: nela celebra-se a festa de Cristo Rei do Universo e se completa o primeiro cinqüentenário do Concílio Ecumênico Vaticano II. A mensagem parece ser clara: esta Igreja que realizou um Concílio a fim de tornar-se mais apta para a evangelização do mundo contemporâneo não pode esquecer que a misericórdia é o coração pulsante da Boa notícia que tem para comunicar à humanidade. Com esta obra queremos manifestar nossa sintonia com o papa Francisco que convida todos os crentes a “fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir de Deus” (Miseicordiae Vultus, n. 3).

O tema da ética foi escolhido porque, a nosso ver, é o que melhor caracteriza a presença do pe. Domênico na comunidade acadêmica vicentina. É impossível falar de ética nesse contexto e não pensarmos no magnífico professor que por tantos anos, de forma brilhante e entusiasta, ministrou esta disciplina, sobretudo no curso de filosofia mas também no curso de teologia. Este ensino extravasou o âmbito da sala de aula, pois suas lições não se limitaram às suas palavras mas transcenderam no testemunho de uma vida simples pautada pelo respeito por cada pessoa e em tudo por um comportamento ético.
Mas para além destes fatos, eu gostaria nesse momento de chamar a atenção para a relação que existe entre estes dois conceitos para que esta obra não seja apenas um ponto de chegada, mas, sobretudo, um ponto de partida para o aprofundamento destes temas tão pertinentes à realidade contemporânea que vivemos.

Um primeiro elemento que merece nossa atenção é o conceito de misericórdia o qual em muitas obras, também recentes, não raro é demasiadamente associado ao pecado. É claro que existe uma associação necessária, enquanto uma das expressões da misericórdia é justamente o perdão por erros cometidos, mas limitá-la a esta relação causa um empobrecimento tal que nos impede de reconhecer sua importância e pertinência ao longo da história bem como nos dias atuais em que tantas situações parecem testemunhar que a sensibilidade pelo outro e o respeito pelos princípios éticos arriscam ser relegados à margem da convivência social.

No latim, a palavra misericórdia é uma composição de duas palavras: miseri e cors. No seu significado original, portanto, quer dizer ter o coração com os pobres no sentido mais amplo que esta palavra pode ter. Misericórdia é, portanto, a atitude de quem transcende o egocentrismo, demonstrando-se sensível à dor, ao sofrimento e às aflições do outro. Tanto no Antigo, quanto no Novo Testamento, a compaixão é a atitude inevitável de Deus diante de toda e qualquer situação que ameace a integridade da vida. Seja do ponto de vista linguístico, seja do ponto de vista bíblico, misericórdia e compaixão, sem serem exatamente sinônimos, são conceitos que se sobrepõe.

Walter Kasper, em sua obra A misericórdia, condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã chama a atenção para a relação entre misericórdia e ética ao dizer que apesar da misericórdia ser uma mensagem especificamente bíblica, a tradição teológica conseguiu desde cedo estabelecer sua relação com experiências humanas gerais e com a reflexão filosófica, com o intuito de explicar o seu sentido bíblico.

Ao longo da trajetória filosófica, ela recebeu tratamentos bem diferenciados. Platão, refletindo a partir da ótica jurídica, alerta que a compaixão pelo acusado pode impedir ao juiz de proferir um juízo justo. Aristóteles por sua vez, manifesta uma visão positiva da compaixão ao reconhecer que o sofrimento imerecido de outra pessoa nos afeta enquanto esse mesmo mal poderia acontecer a nós. Novamente diferente é a posição dos estóicos para quem o afeto da compaixão não é compatível com o princípio que rege a ética estóica que preconiza o domínio da razão sobre os afetos. Dentro desta compreensão, a compaixão indica debilidade e enfermidade da alma.

Mais tarde, santo Agostinho e são Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles e inspirados pela compreensão bíblica, definiram a compaixão como a atitude de partilhar o sofrimento dos outros (ter o coração aflito por causa da aflição de outra pessoa). Notam que a compaixão e a misericórdia não são unicamente atitudes afetivas mas também efetivas enquanto a sensibilização conduz à ação para combater e superar a carência e o mal. É esta compreensão que levou o cristianismo a desenvolver a assistência aos pobres tanto no âmbito individual quanto no âmbito coletivo, assistência essa que foi gradualmente se institucionalizando e sem a qual não é possível compreender a história cultural do Ocidente e até mesmo da humanidade.

Na Idade moderna, a compaixão recebeu tratamento diferenciado. Jean-Jacques Rousseau viu na compaixão a virtude de todas as virtudes sociais, pois na sua base está a capacidade de se colocar no lugar do outro. Sempre na visão do filósofo, a solicitude a uma pessoa concreta pode tornar-se amor universal pela humanidade. Para Arthur Shopenhauer que descreve a compaixão como conhecimento do próprio no outro, ela é o princípio de toda moral. Diferente é a posição de Immanuel Kant que manifesta-se crítico em relação às éticas universais baseadas em sentimentos como a compaixão, pois na conduta ética de um ser racional não podem ser vinculativos os motivos emocionais mas apenas os motivos racionais evidentes em si mesmos. Em decorrência disso, rejeita a compaixão como fenômeno inferior do ponto de vista moral.

Ultimamente, Emmanuel Levinas assume uma postura crítica diante da posição central do eu como indivíduo que se arroga o direito de proferir juízos éticos e determinar verdades e valores morais e inverte a situação colocando ao centro o dever prévio de respeitar o direito incondicional do outro. Nessa perspectiva, o amor, a compaixão e o perdão voltam para o centro da atenção.

Em sua obra Vidas despedaçadas, Zygmunt Bauman chama a atenção para a refugo humano. Hoje são mais de sessenta milhões de pessoas errantes que deixaram suas terras sem saber se encontrarão um outro lugar onde possam construir ou reconstruir sua vida e que constituem um forte apelo ético à sociedade contemporânea.

Enfim, o debate está aberto e esta obra quer ser apenas uma gota nesse imenso oceano.

Em nome de toda a comunidade acadêmica da Faculdade Vicentina, nosso muito obrigado aos professores que se dispuseram a escrever (professor Bortolo Valle, Edimar Brígido, Carlos Luiz Bacheladenski e Milton Mayer). Nosso agradecimento também a quem prestou o paciencioso serviço de revisão (profª Fátima Raquel Szinwelski de Oliveira) e a todos os que de uma forma ou outra contribuíram para que o projeto chegasse a bom termo.

Essa homenagem e gratidão, porém, tem em vista de modo todo particular a presença e trabalho do padre Domenico, por mais de trinta anos, na vida e na história da Faculdade Vicentina. Sua colaboração começou quando ainda se tratava de um curso livre do Instituto Vicentino de Filosofia, mas a partir da aprovação dos cursos de bacharelado em Filosofia e em Teologia e do credenciamento da Faculdade Vicentina junto ao Ministério da Educação e Cultura, sua colaboração se ampliou ainda mais e novas disciplinas lhe foram confiadas seja nos cursos de graduação seja na Pós-Graduação lato sensu: Grego, Latim, Ética, Filosofia do Brasil e da América Latina e Ética e Espiritualidade. Mas, neste momento, permita-nos, padre Domenico, um tratamento mais familiar. Queremos expressar nossa admiração pela sua ampla cultura, sua postura ética e dialogal, sua disposição unida à generosidade, sua sensibilidade humana e seu modo de ser tão jovial. Queremos lhe pedir que, se conhece uma fórmula para chegar ao terceiro jubileu de prata com tanta jovialidade, por favor, partilhe conosco, pois também nós gostaríamos de chegar aos 75 anos difundindo tanto amor pela vida. De qualquer forma, o que mais desejamos, nesse momento, é expressar nossa admiração por você e nossa profunda gratidão por tudo o que tem realizado e certamente ainda continuará a realizar na e através da Faculdade Vicentina.

Muito obrigado!